A América do Norte votou A democracia imperialista avança em sua decomposição

Sábado, 14 Novembro 2020 21:27

Na terça feira, 3 de novembro, à noite, os resultados das eleições presidenciais dos EUA ainda eram pouco claros. Sem obter uma vitória devastadora, nem ganhar no estado da Flórida, os democratas já sabiam que estavam no pântano de uma eleição questionada por Trump, que vinha preparando o terreno com acusações de fraude no voto pelo correio desde, pelo menos, o primeiro debate. Pouco mais de uma semana depois, a estratégia judicial de Trump para impugnar os resultados em vários estados vem de fracasso em fracasso, mas não é no nível legal onde devemos fixar nossa atenção. Biden tem grandes chances de se consagrar presidente quando o colégio eleitoral se reunará no início de dezembro. Porém, a idéia de que ganhou com fraude penetrou profundamente em um enorme setor da população e seu discurso de curar as feridas buscando a unidade, depois da polarização extrema que as eleições refletiram só parcialmente, não tem por hora nenhuma perspectiva de se assentar em elementos materiais, algo que só uma saída da crise poderia fornecer.

 

O sinuoso processo de crise política aberto na noite de 3 de novembro segue em curso, já que até o momento, a chamada transição está atolada e Trump e os republicanos não renunciam a desafiar o resultado eleitoral. Aqui nos limitaremos a assinalar alguns elementos da situação.

 

Trump e o trumpismo não foram repudiados

 

Longe de todos os prognósticos, Trump obteve até o momento (a contagem continua em vários Estados) mais de 72,5 milhões de votos na eleição. É o segundo candidato a presidente com mais votos de toda a história, só superado pelo próprio Biden, que obteve, por enquanto, mais de 77,5 milhões. A diferença entre ambos, com certeza, é bem maior daquela que obteve Hillary Clinton em relação ao próprio Trump em 2016. Porém, após quase 4 anos na Casa Branca, com uma política que agitou a polarização política e ideológica, um tratamento desastroso da pandemia e uma recente entrada em recessão, Trump conquistou mais votos que em 2016 e apresenta uma base eleitoral gigantesca que complica as pretensões de queima do Partido Republicano (PR ou GOP) e de ter um processo de transição mais tranquilo. O trumpismo não foi repudiado nas urnas; pelo contrário, recebeu o apoio de pouco menos da metade da população.

 

O voto massivo assinala uma crise da democracia imperialista

 

Obviamente, se com semelhante quantidade de votos Trump não conquistou a presidência é porque Biden conseguiu, não só superá-lo no chamado voto popular, senão que alcançou diferenças suficientes nos chamados Estados oscilantes (swing states). Isto significa uma afluência massiva de eleitores nas urnas, a maior desde 1908 (quando participaram 65,7%), considerando os votos até agora apurados (participação de 63,9%), mas que poderia, inclusive, superá-la se alcançar os 66,5% projetados (The Washington Post, 5/11). Quando Obama foi eleito em meio à crise de 2008 com uma participação de 61,6% já havíamos defendido que isso, longe de mostrar a força da democracia imperialista, representava uma crise. Com este novo salto na participação, entra em questão a relação das massas com as instituições burguesas, em sua decadência, já que o sistema eleitoral norte americano está baseado em uma democracia de elite. Porém, frente ao fracasso dessa elite, a irrupção de grandes massas que vão votar gera uma contradição que ainda não se conseguiu responder. Essa irrupção na política desloca o papel das elites organizadas nos dois grandes partidos da democracia imperialista, o Democrata e o Republicano, que ficam ambos, depois de colher resultados semelhantes, em uma profunda crise.

 

As instituições da república perdem suas bases históricas

 

O desafio colocado por Trump ao desconhecer os resultados e denunciar a fraude eleitoral faz ranger a série de instituições estatais que conformam a chamada “república” norte americana. Em primeiro lugar, a relação da união federal com os estados e o papel de mediação que joga, nas eleições presidenciais, o colégio eleitoral que elege o presidente. Então, em nível federal e em cada estado, o papel da justiça burguesa e sua relação com o resto dos poderes públicos. Passamos mais de uma semana de um governo em exercício operando sobre esses mecanismos e os colocando sob extrema tensão.

 

Um setor dos chamados progressistas ou socialistas democráticos nos EUA, do qual fazem eco um número importante de variantes do centrismo trotskysta, pretendem desenvolver este questionamento com base em um programa democrático radical, levantando o parlamento unicameral e o fim do colégio eleitoral para trocá-lo pelo voto direto para presidente. Contudo, as instituições políticas são o produto da história e nos EUA têm servido como um mecanismo estatal para atenuar as contradições de classe, em suas labirínticas manifestações, como são as tensões entre o campo e a cidade, entre diferentes setores burgueses, e entre estes e as massas operárias.

 

Depois da II Guerra Mundial, estas instituições adquiriram uma base de massas mais ampla, com a extensão das políticas do New Deal e a indiscutível hegemonia ianque no desenho do equilíbrio do pós guerra, baseado em sua preponderância na produtividade do trabalho, o fordismo, o dólar, Bretton Woods e suas instituições como o FMI, o Banco Mundial e a ONU.

 

Talvez estejamos assistindo ao choque aberto entre estas instituições estatais da principal potência imperialista, produto de processos históricos anteriores (independência, constituição, guerra civil, equilíbrio do pós guerra), com um desenvolvimento divergente nas bases da sociedade e nas contradições que em seu seio se desenvolvem, estimuladas pela irreversível crise histórica do imperialismo. Se todas estas instituições funcionavam como um atenuador das contradições sociais, isto estava baseado, como colocava Lênin e Trotsky, na posição especial de certos países imperialistas no mercado mundial, essa “gordura” provinha da exploração das colônias, das semicolônias e, mais tarde, de uma relação de tutela sobre a Europa e o Japão. O programa dos revolucionários não deve se orientar para renovar essas instituições da democracia imperialista, o que, além disso, é uma utopia do ponto de vista material e histórico, mas sim desenvolver essa contradição entre o desenvolvimento da base econômica em sua dinâmica de crise e a inércia do andaime das superestruturas políticas. É a partir destas contradições históricas que se produzem as revoluções, os golpes de Estado, as contrarrevoluções. A tarefa é preparar a vanguarda operária para esse tipo de desenvolvimento, opondo às instituições do Estado imperialista a revolução para destruí-lo e a ditadura do proletariado, que coloca uma nova relação com a propriedade, socializando os meios de produção.

 

Biden não representa uma saída para o imperialismo

 

Claramente, o projeto trumpista tinha como eixo dar conta da crise do equilíbrio do pós guerra, buscando uma mudança da orientação imperialista para tomar a iniciativa alterar todo aquele ordenamento institucional. Esse projeto ficou pela metade, já que Trump modificou várias daquelas relações, mas não conseguiu levá-las até o final. A vitória de Biden, além de ficar totalmente questionada pela campanha de Trump contra a legitimidade das eleições e da perspectiva de ter o senado contra (ainda restam definir 2 cadeiras na Georgia), coloca na Casa Branca um governo débil, também do ponto de vista de que todas suas propostas são, pelo menos até o momento, desfazer as modificações que Trump fez em 4 anos, tentando voltar a um status quo que já não existe. Esse não é, tampouco, um plano sério de saída para a crise. Ter claro que é necessário ter uma política mais firme para a China e Rússia para avançar na assimilação dos ex-Estados operários não diz muito, se não se responde a pergunta estratégica que percorre as cabeças imperialistas há pelo menos três décadas: como fazê-lo? De cara, o futuro governo de Biden já foi etiquetado pelo imperialismo ianque como um governo de transição.

 

A crise política nos EUA desordena a política mundial

 

Na conjuntura, o tortuoso da transição presidencial que ainda tem adiante 2 longos meses está aprofundando ainda mais o que vínhamos observando desde o começo da pandemia e da crise: estando o imperialismo ianque imerso em sua própria crise interna, diferentes setores de classe e governos que os representam tomam posições no mundo. A China avança em uma postura mais agressiva (mar da China, conflito com a Índia, Hong Kong e Taiwan), a Turquia desenvolve uma agenda própria desafiando a UE (conflito com a Grécia no Mediterrâneo Oriental e Chipre, apoio ao Azerbaijão na guerra em Nagorno Karabaj), se produzem conflitos importantes internos na UE. Existe inclusive uma preocupação de que Trump tome medidas intempestivas de política internacional nos dois meses que restam de sua administração. Além disso, segue se desenvolvendo processos de luta de massas em vários países do globo, com diferentes conteúdos, mas todos sob a sombra do avanço da crise mundial e da falta de um norte claro para as diferentes frações burguesas e pequeno burguesas.

 

A contenção dos movimentos de luta é só conjuntural

 

Quanto aos movimentos de luta dentro dos próprios EUA, que puseram no tapete todas as contradições sociais que se acumulam desde a crise de 2008 e seu grau de profundidade, devemos ter claro que o desvio para as eleições com a bandeira de “tirar Trump” e o apoio massivo que os progressistas e o DSA (Democratic Socialists of America) deram a Biden não significa que estes processos tenham sido encerrados. Mesmo que as direções dos movimentos provavelmente fiquem cooptadas pelo Estado burguês e suas instituições, as bases históricas e sociais dos mesmos seguem sem resolução e podemos prever que explodirão com maior virulência, agora contra um Estado encabeçado pelos democratas, cujo partido já se observa dividido entre a ala conservadora da elite política que o dirige e os setores que estão sob a pressão dos movimentos, como mostra o debate iniciado no dia seguinte da eleição sobre a perda de cadeiras na câmara de representantes (os democratas mantiveram sua maioria, mas com margem menor).

 

A classe operária segue atuando de forma diluída

 

Dois pontos para levar em conta na eleição são o apoio aberto da burocracia sindical da AFL-CIO aos democratas (o que não é nenhuma novidade), mas também de alguns sindicatos que protagonizaram importantes lutas nos últimos anos e, por outro lado, tomar nota de que Trump perdeu a eleição aos democratas recuperarem seus bastiões nas históricas regiões industriais do chamado cinturão do óxido (especificamente os estados de Michigan, Wisconsin e Pensilvânia). Este último não quer dizer, muito menos, que tenha existido virada nas preferências dos trabalhadores industriais dessas zonas. Como sempre, a intervenção da classe operária nas eleições burguesas é, por si mesma, atomizada e diluída, ainda mais quando não existem candidaturas de nenhum partido com um programa de independência de classe. Todavia, a opção era seguir o bonapartismo de Trump que tenta uma “conexão” direta e em termos já culturais (porque pouco restou do discurso de recuperar as fábricas da campanha de 2016) ou a conciliação de classe que significa a velha aliança que une a burocracia sindical com os burgueses imperialistas do Partido Democrata. Porém, além disso, a classe operária não teve um papel como tal, nem mesmo nos processos de luta, ainda que pudemos apreciar a intervenção de alguns sindicatos nas mobilizações pela questão racial e contra a polícia, experiências de vanguarda que devemos fazer propaganda e desenvolver como parte da elaboração programática de nossa classe, levantando consígnias como expulsar a polícia dos sindicatos ou não transportar repressores nos ônibus coletivos. Sem dúvida, as tarefas de autodefesa para enfrentar as forças repressivas e, inclusive, as forças armadas através do armamento da classe operária é hoje um debate central para todo operário consciente e para todo revolucionário.

 

 

É urgente uma direção revolucionária internacional

 

Para que a classe operária e seu núcleo proletário industrial possam intervir na situação, não basta agitar a independência de classe. É necessário desenvolver, com base na experiência que está ganhando um setor de vanguarda na crise em curso e nos enfrentamentos abertos, a elaboração de um programa de transição no qual o proletariado se postule, através de seu controle da economia e seu papel na administração das coisas, para dar uma saída para a crise capitalista enfrentando o aparato burocrático militar, cujo papel não é só dominar a classe operária de um país, mas manter a sobrevida do capitalismo em putrefação em todo o planeta. Enfrentar o imperialismo e o Estado ianque é uma tarefa colossal e só pode se colocar em uma unidade de ferro com os trabalhadores da Europa e Japão e, sobretudo, com os povos semicoloniais que lutam contra a ingerência do FMI e dos exércitos ianques na América Latina, Oriente Médio, Ásia, resumindo, em todo o globo. Trata-se de assentar as bases de um partido revolucionário nos EUA, um partido armado com a teoria da revolução permanente, como seção da IV Internacional reconstruída. Mais uma vez, insistimos em nosso chamado a uma Conferência Internacional das correntes e tendências que defendemos o programa da ditadura do proletariado para discutir as tarefas preparatórias para a conquista deste objetivo. A aceleração da crise é extrema, nossos desafios são urgentes.

 

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