Belarus: fraude, crise política e irrupção dos trabalhadores

Sábado, 05 Setembro 2020 14:26

Belarus: fraude, crise política e irrupção dos trabalhadores

Já são três semanas de intensa agitação na Belarus, impulsionada pela rejeição à fraude eleitoral pela qual o Presidente Lukashenko pretende prorrogar o seu mandato. Já se passaram 26 anos desde que assumiu o cargo pela primeira vez, em 1994. As manifestações de rua dão o ritmo desde 9 de agosto, e a repressão brutal do regime, longe de enfraquecê-lo, produziu o contrário. Nas ruas, a juventude de classe média desempenha um papel importante, mas todos os observadores destacam a irrupção do movimento operário, principalmente de seus batalhões mais concentrados da indústria.

As marchas e protestos, que levaram cerca de 100 mil pessoas às ruas de Minsk no domingo, 23 de agosto, são um sinal de um movimento espontâneo, com confusão de objetivos e com uma liderança fragilizada pela pouca estruturação da oposição nacionalista / liberal, pró reformas de mercado, cuja figura eleitoral é a candidata da oposição, Svetlana Tijanóvskaya, atualmente exilada na Lituânia. O movimento possui extensão nacional e não se concentra apenas na capital, Minsk.

Antagonismos interestatais

 

Belarus é um país de 9,4 milhões de habitantes, ex-membro da URSS e posteriormente aliado histórico da Rússia. Nessa aliança, é o parceiro menor, mas não devemos pensar na relação como estamos acostumados: a Belarus concentra importantes centros de industrialização de matérias-primas russas. Um elemento que alimenta a crise atual é a depressão do preço do petróleo no início do ano, à medida que as refinarias bielorussas exportam petróleo processando o petróleo cru que obtêm a preços subsidiados da Rússia. Além dessa estreita relação econômica, que teve seus altos e baixos nos últimos anos, os dois países também estão ligados por acordos militares e elementos históricos culturais.

É por causa dessa relação com a Rússia que muitos, incluindo o bonapartista Lukashenko, rotulam os protestos recentes como "pró-Ocidente" ou “pró-União Europeia”, tentando equipará-los ao chamado Euromaidan que invadiu a Ucrânia em 2014, levando à renúncia do presidente e, mais tarde, para uma guerra civil. A verdade é que as mobilizações não reivindicam a entrada do país na UE, o que era explícito em 2014 na Ucrânia, e nem sequer levantam consignas antirrussas. A própria Tijanóvskaya, da Lituânia, teve o cuidado de demarcar as posições da oposição de um enfrentamento com Moscou, deixando claro que são protestos que se limitam a defender apenas a  democracia, ou seja, a democracia burguesa da qual a única experiência que o país tem são… os governos de Lukashenko, que paradoxo.

A União Europeia (UE) vem de anos de afrouxamento das sanções que aplicava à Belarus pelas violações das liberdades políticas do chamado “último ditador da Europa”, num contexto de revisão das relações com a própria Rússia, país com o qual a Alemanha possui importantes vínculos produtivos, principalmente pelo fornecimento de matérias-primas, especialmente hidrocarbonetos. Diante do processo atual, as autoridades da UE se limitaram a emitir declarações e na sexta-feira, 28/08, votaram sanções para algumas figuras do regime.

Por sua parte, Putin precisa ser prudente em sua relação com o país. Embora apoiasse Lukashenko e, na semana passada, tenha avançado na ameaça de uma intervenção direta na crise, ele precisa, por um lado, manter sua relação com Trump e a UE e, por outro, ponderar mais à estabilização da Belarus do que o próprio Lukashenko, razão pela qual um setor de seu partido político mantém vínculos com os sindicatos bielorrussos que participam das mobilizações por meio da burocracia sindical da Federação dos Sindicatos Independentes da Federação Russa (FNPR).

Os Estados Unidos, por sua vez, não assumiram uma posição clara, já que o peso da crise interna do imperialismo pode não apenas explicar essa posição, mas é também um elemento determinante na série de crises políticas, de regime e de Estados, e os processos de luta de classes que estão atravessando o mundo. A desorientação imperialista, face às eleições presidenciais de novembro e com um governo Trump duramente atingido pelas consequências da recessão económica, a má gestão da pandemia e o processo de luta contra a brutalidade policial e o racismo, é um elemento central da conjuntura internacional.

Toda uma série de correntes políticas, a ressaca do estalinismo e todos os tipos de populistas, destacam o antagonismo entre os EUA e UE por um lado, e Rússia e China por outro, para condenar as mobilizações em Minsk e outras cidades e apoiar Lukashenko e seu regime, que já prendeu 7.000 manifestantes, matou mais de 3, além dos desaparecidos nas últimas repressões. A lata de lixo da história é o único lugar no qual esses nostálgicos do Gulag podem ser acolhidos, não têm nenhuma aproximação com a esquerda revolucionária e a vanguarda do movimento operário internacional.

 

A ofensiva imperialista sobre a Rússia, e especialmente sobre a China, deve ser apreciada do ponto de vista do processo histórico, e não da lógica burguesa da geopolítica. Trata-se do problema da assimilação dos Ex-Estados operários, cujas contradições explosivas se desenvolvem em todo tipo de manifestações específicas em vários territórios nacionais, com características determinadas. Estamos a falar de processos tão diferentes como os de Hong Kong, da Ucrânia e agora Belarus, mas que são a expressão de toda uma fase histórica. Voltaremos a este problema nodal da situação mundial a seguir.

Forças elementares

 

Belarus, como outros ex-Estados operários, sofreu um processo de privatização da indústria no início da década de 90. No entanto, esse processo de restauração capitalista "a frio" encontrou seus limites precocemente, levando à renacionalização de grande parte da empresas já em 1994. Atualmente, o capitalismo de estado na indústria atinge entre 75% e 80% do setor. É um processo de renacionalização que também foi realizado na Rússia, embora mais tarde, sob o comando de Putin. Esses elementos servem para apontar que a protoburguesia bielorrussa é particularmente débil, e não existem os chamados “oligarcas”, que monopolizam ramos industriais inteiros (ao menos não da indústria pesada) como foi o caso na Ucrânia. Os setores dessa protoburguesia junto com as camadas pequeno burguesas são a base da candidata da oposição, que na verdade é substituta de seu marido, um empresário detido pelo regime.

Outra diferença com a Ucrânia, importante do ponto de vista sociológico, é a relativa fragilidade do setor agrícola e em geral da produção de matérias-primas, em relação à indústria. A indústria herdada da URSS permanece na Belarus, mostrando-se competitiva em alguns ramos, como na fabricação de máquinas pesadas e tratores, e na semimanufatura de produtos primários. Esta relação é bastante eloquente quando considerada em números: a agricultura, a pesca e a silvicultura representam 6,6% da produção bruta, enquanto a indústria representa 26%. O setor de serviços, que tem maior peso na economia, sustenta outra fração importante da classe trabalhadora, que inclusive tem participado ativamente dos protestos, como o de transportes, e também amplos setores pequeno burgueses.

Quando falamos sobre o peso econômico da indústria, isso também se reflete na política. Porque todas as facções em guerra têm um interesse ativo em conquistar para si a simpatia da classe operária. Já falamos da federação sindical russa, mas atividade semelhante é realizada pela burocracia da Confederação Sindical Internacional (CSI, à qual estão filiados as CTAs e a CGT argentinas), especialmente suas seções europeias ligadas por mil e um laços aos Estados e patronais imperialistas da UE. Além disso, a oposição nacionalista / liberal faz chamados à greve para se apoiar nas fábricas, enquanto Lukashenko teve uma surpresa desagradável quando tentou retomar a popularidade em sua visita à fábrica de tratores de Minsk, e agora envia as autoridades locais para negociar com os trabalhadores.

As ações operárias têm sido importantes, incluindo greves, assembléias nos portões, colunas operárias nas marchas e reuniões com os gestores e as autoridades locais para exigir a libertação dos detidos e rejeitar as sanções contra os trabalhadores participantes das mobilizações, embora não tenha se concretizada a convocação de uma greve geral. Tamanho é o peso das medidas sindicais que, após as primeiras manifestações desse tipo, Lukashenko teve que libertar os primeiros detidos. A novidade é que esse tipo de luta está se desenvolvendo em um país no qual o direito à greve não é legalmente reconhecido e a repressão está na ordem do dia. Enquanto mantém-se a propriedade estatal das empresas, Lukashenko vem aplicando um programa, em acordo com o FMI, EUA e UE, de sucessivas reformas, liquidando negociações coletivas, impondo contratos de trabalho temporário, aumentando a idade para aposentadoria e promovendo um declínio constante nos salários reais devido ao efeito da inflação e da desvalorização.

Por enquanto, as ações do proletariado se posicionam contra a pagar pelas lutas entre as frações dirigentes. Utilizam a oposição para enfrentar sua patronal. As organizações sindicais, estatizadas, não cumprem seu papel, por isso, os trabalhadores formaram comitês operários, que a oposição tenta influenciar. A luta por uma direção que permita a intervenção independente da classe trabalhadora é urgente e, por sua vez, uma tarefa internacionalista que os revolucionários da Europa, Rússia e do resto do planeta devemos apoiar com toda seriedade e audácia.

Entre a assimilação capitalista e a decomposição imperialista

 

A queda da URSS significou para muitas correntes a restauração capitalista plena e a reversão histórica total da Revolução de Outubro. No entanto, o resultado desse processo foi muito mais tortuoso para os capitalistas, porque se produziu na etapa avançada da decomposição imperialista. As privatizações, como um processo de reforma econômica sem recorrer a uma contrarrevolução aberta para destruir os alicerces do aparato estatal, surgido em Outubro, e as sucessivas revoluções que expropriaram a burguesia acabando com a sua dominação em determinados territórios ao longo do século XX, demonstraram ser um fracasso como aposta do imperialismo. Assim, este processo de assimilação ao capitalismo continua a desenvolver-se, ainda que as protoburguesias dos diferentes ex-Estados operários, especialmente Rússia e China, não tenham conseguido tornar-se as novas classes proprietárias dominantes. Isso não se define no âmbito nacional, e sim na arena mundial. O proletariado, por sua vez, constitui-se ainda uma reserva para enfrentar os processos de restauração em curso, apesar de ter sido utilizado em diferentes ocasiões como base de manobra por um ou outro setor da burocracia restauracionista e/ou das camadas pequeno burguesas aliadas ao imperialismo. Esta tragédia tem como causa principal a crise da direção revolucionária do proletariado internacional.

É curioso como voltamos a ler sobre situações revolucionárias objetivas, desta vez das mãos do PO(t) e Altamira, um velho inimigo declarado de Nahuel Moreno, ao discutir os processos nos ex-Estados Operários. O que Altamira esquece é que, para estabelecer tendências objetivas, que não estão descartadas, é preciso definir quais são as transições. Quando Lenin discutiu este problema, já havia definido a fase superior do capitalismo, o imperialismo, como transição entre o capitalismo e o socialismo. No processo bielorrusso, devemos considerar o problema da assimilação, que torna a discussão da transição muito mais complexa. Não só porque o papel dos ex-Estados operários não está definido no sentido de que, se as protoburguesias poderão ou não, a partir de um inevitável conflito violento, conquistar uma posição como classe capitalista no mercado mundial e no sistema de Estado ou permanecerão relegadas como lamentáveis sub-burguesias semicoloniais (e este é o programa do imperialismo); mas também podemos tomar a hipótese de Leon Trotsky, que argumentava que a direção contrarrevolucionária que dirigiu os processos de restauração, em sua contradição de não ser capaz de se constituir como classe, geraria, em sua relação com as leis tendenciais da economia mundial, um caos capitalista. Esta última hipótese é para nós a que mais se aproxima do processo real. E diante desse caos, o necessário é girar esta tendência a partir de uma direção revolucionária consciente.

Programas

 

Distantes dessa discussão, as organizações do trotskismo centrista latino-americano em suas notas abstraem-se do caráter de classe do Estado na Belarus, do processo de assimilação e das contradições estabelecidas pela decomposição imperialista, para repetir o que dizem em qualquer outro lugar: trata-se de um processo “pela democracia” no qual a classe trabalhadora deve intervir “de forma independente”. Continuam presos no esquema de transcrescimento da revolução democrática em revolução socialista que Moreno ou Guillermo Lora os ensinou. Podem até levantar consignas como “Fora Lukashenko”, como faz o Novo MAS, das quais é preciso perguntar: para que venha quem? O Partido Obrero (oficial) fala em promover “uma alternativa política própria dos trabalhadores”, enquanto o PTS nem mesmo se refere aos trabalhadores, simplesmente falando sobre “a independência política que o movimento conquiste em relação à oposição liberal e populista”. Estão se referindo a uma candidatura independente nas próximas eleições? As discussões da conferência latino-americana da FIT-U nos fazem pensar assim.

A crise aberta pela fraude eleitoral em relação à democracia como forma política é um ponto de partida para promover a luta operária contra a restauração capitalista e seus aplicadores, cujas diferenças, em todo caso, estão na velocidade dessa restauração. A ditadura de Lukashenko é repressiva, aprisiona  e reprime aqueles que lutam. Não podem os trabalhadores da França e os coletes amarelos, o movimento negro do BLM e os trabalhadores chilenos afirmar que a democracia burguesa faz exatamente o mesmo? O problema da relação das massas com a política surge da relação do proletariado com as alavancas da economia. Não é necessário fazer rodeios, o caráter histórico da Revolução de Outubro continua vivo. A democracia operária é mil vezes superior às eleições parlamentares burguesas, e se os trabalhadores, que se tornaram o eixo da situação no país, podem desenvolver essa experiência, será golpeando Lukashenko e a oposição pró-imperialista na produção, com a greve geral e o avanço do controle operário dos ramos econômicos. É claro que tal processo não pode ficar restrito à Belarus, porque até o limite a contradição do imperialismo e a própria sobrevivência de Putin passam pelo processo de assimilação da Rússia. Por isso, é necessário que a luta se fortaleça a partir da intervenção do proletariado russo e de toda a região, com o apoio decidido da classe trabalhadora europeia e norte-americana, denunciando em voz alta o conteúdo real de exploração da democracia imperialista. É neste sentido que o proletariado bielorrusso deve lutar pela sua independência, independência de classe como sujeito do processo histórico, não só levantando demandas “sociais e econômicas”, mas também postulando sua direção política a partir da administração das coisas, da qual nasce a verdadeira democracia, a democracia proletária. A luta por uma Federação Socialista, recuperando o melhor da experiência da URSS, como forma política da ditadura do proletariado em seu desenvolvimento internacional. Até o fim, a luta dos revolucionários é pela regeneração da vanguarda comunista, retomando as tarefas que Leon Trotsky nos deixou, lutando pela reconstrução da Quarta Internacional. À luz dos processos complexos e riquíssimos que se desenrolam aos nossos olhos, convocamos as correntes que se reivindicam pela ditadura do proletariado a uma Conferência Internacional para discutir os desafios urgentes que enfrentamos.

 

 Publicado em www.cor-digital.org no 29/08/2020