DEMOCRACIA PRA QUEM?

Friday, 05 June 2020 07:55

Em todo o mundo, a pandemia acelerou e agudizou os processos abertos pela crise econômica de 2008, dos quais a burguesia não consegue uma saída. Ainda que com crescimentos econômicos conjunturais, provocados pela oferta de crédito nos últimos anos, o imperialismo não consegue reverter a tendência geral de queda na lucratividade da produção e de endividamento. Com o advento da pandemia, os Estados ampliaram sua dominação nas relações sociais produtivas, intervindo diretamente na produção através de medidas de lockdown e racionalização da produção, injeção de crédito e subsídios através de ampliação e rolamento das dívidas, que ultrapassam os U$255 trilhões e tornam-se cada vez mais impagáveis.

Com o aprofundamento da crise, intensificou-se também as disputas interestatais pelo comércio global (agora também por insumos hospitalares), por fundos de recuperação econômica regionais e pelo controle migratório, o esvaziamento e desmonte das organizações multilaterais e sua substituição por acordos bilaterais impostos nesta disputa, além de crises políticas internas.

A pandemia também acelerou os processos que buscam redefinir as relações de classes dentro dos Estados e a instituição de um novo pacto entre capital e trabalho através do desmonte das instituições criadas desde o pós-guerra. Nesse sentido, ampliam-se os ataques aos trabalhadores em todo o mundo com reformas que ampliam o tempo de contribuição, intensificam, precarizam e flexibilizam o trabalho e reduzem o valor da força de trabalho com demissões massivas.

Todos esses processos que caracterizam a fase decadente do imperialismo e suas contradições, agudizadas pela crise pandêmica, empurram a classe trabalhadora em todo o mundo para situações de barbárie. Por tudo isso, começam a irromper processos mais radicalizados de luta de classes, os quais a política imperialista de quarentena não consegue mais segurar. Trabalhadores organizados na Itália, Espanha e França iniciam novas jornadas de luta contra demissões e condições de trabalho. No Chile, a população utiliza sua experiência adquirida nas lutas do ano passado para radicalizar manifestações de enfrentamento ao governo. Atualmente, no seio do imperialismo, as lutas contra a repressão policial e o Estado racista assumem formas semi inssurreicionais em todo os Estados Unidos.

Estes processos de luta demonstram a incapacidade das instituições da democracia burguesa em absorver as contradições de classe, acentuadas pela crise, e escancaram o problema de direção revolucionária mundial. Só a intervenção organizada e consciente da classe trabalhadora nestes processos pode alavancar a luta rumo a destruição do estado burguês como forma de dominação capitalista. No mundo inteiro, está cada vez mais nítido: a democracia burguesa não serve e nunca serviu aos trabalhadores!

 

O AVANÇO DO CORONAVÍRUS E DA CRISE ECONÔMICA NO BRASIL: AMBOS ESTÃO DESTRUINDO A CLASSE TRABALHADORA

No Brasil, a pandemia se apresenta de forma catastrófica. Anos de redução de investimento na saúde, acentuada pela aprovação do teto de gastos em 2016 e a ausência de uma política nacional de controle da epidemia já tiraram mais de 34 mil vidas até o momento. Considerando a subnotificação, implementada inclusive como política em alguns estados, esse número pode ser até sete vezes maior. Com a enorme desigualdade, característica de um país semicolonial, o corte de classe tem se apresentado como o principal definidor do índice de mortalidade que a doença assume no país. Morrem mais trabalhadores informais e da saúde, negros e periféricos.

A crise econômica e social se ampliam diante da epidemia e da crise política. O PIB apresentou queda de 1,5% no primeiro trimestre (período que abrangeu apenas 15 dias do início da pandemia). A produção industrial regrediu 18,8% em abril, acumulando queda de 27,2% em um ano. O desemprego subiu para 12,6%, fechando mais 4,9 milhões postos de trabalho. Desses, 3,7% eram empregos informais. Atualmente a população que está fora da força de trabalho chega a 70,9 milhões de pessoas. Dos trabalhadores formais, mais de 8 milhões tiveram seus contratos suspensos ou reduzidos pela MP 936, editada pelo governo Bolsonaro, que permite a suspensão do contrato e redução de salários e jornada durante a pandemia. Esse número representa mais de 20% dos trabalhadores formais. Segundo informações da Caixa Econômica, quase 60 milhões de pessoas já receberam o auxílio emergencial de R$600, e estima-se que cerca de 32 milhões de trabalhadores podem ficar sem renda e sem direito ao auxílio pela regra determinada.

As disputas interburguesas também se acirraram com o advento da pandemia e ampliaram a crise do governo Bolsonaro. Desde o início da pandemia, dois ministros da saúde foram afastados do governo por diferenças no combate à epidemia. Enquanto tentavam implementar políticas alinhadas com a OMS, os ministros chocaram-se com o negacionismo bolsonarista e sua defesa da cloroquina como medicamento de protocolo para casos de contaminação por covid-19. Há mais de quinze dias, o ministério da saúde segue com ministro interino proveniente das forças armadas.

As políticas de combate da epidemia alinhadas com a OMS foram implementadas pelos governadores dos estados, em aberta disputa com o governo federal pelo protagonismo no controle da crise. João Dória (PSDB-SP) e Wilson Witzel (PSC-RJ), aliados eleitorais de Bolsonaro, protagonizaram a ruptura com o governo federal na condução do controle da pandemia e acirraram a disputa política com Bolsonaro. A burguesia nacional ligada ao comércio e prestação de serviços, apoiadora de Bolsonaro, faz ampla campanha contra medidas de isolamento e pela reabertura do comércio evocando a salvação da economia, enquanto o setor da burguesia ligado ao mercado financeiro e à indústria (ambos auxiliados pelas medidas do governo) se alinharam, por algum tempo, à política imperialista de controle pelo isolamento. No país inteiro, a pressão pela reabertura é mais forte e envolve os setores da classe média e trabalhadores empobrecidos pela crise. Nas próximas semanas, os estados iniciarão os processos de flexibilização do isolamento com a abertura do comércio, mesmo com o número de contaminação e mortes longe de atingir o pico.

As medidas de isolamento e quarentena, como política do imperialismo, não foram aplicadas para salvar vidas, mas sim o capital. Buscam evitar o colapso dos sistemas de saúde, racionalizar a produção diante da possibilidade de uma situação mais catastrófica e desorganizam, com a conivência das direções, a classe trabalhadora diante das medidas dos governos e patrões que buscam jogar os custos da crise nas nossas costas. Aplicar ou não aplicar a política de isolamento não diferencia os governos em seu conteúdo de classe, burguês, apenas nas estratégias que utilizam para minimizar os custos da crise para o Estado. Fosse para salvar vidas, porque o número de assassinatos pela polícia militar aumentou mais de 40% em São Paulo e no Rio de Janeiro durante a pandemia, mesmo com decretos de isolamento e redução da criminalidade? A recomendação para ficar em casa facilitou a política de extermínio da juventude periférica da polícia de ambos os estados.

Nós, trabalhadores, não podemos ficar sujeitos às disputas interburguesas e suas políticas para o controle da crise pandêmica. A pandemia atinge massivamente a classe trabalhadora e a política cínica de “defesa da vida” não têm nos protegido, já que o isolamento não nos é uma escolha pessoal. Como trabalhadores, somos os únicos interessados na defesa de nossas vidas e, portanto, precisamos intervir de forma organizada nesta crise, com nossos próprios métodos.

 

BOLSONARO E A CRISE POLÍTICA INSTITUCIONAL

Além da crise entre o governo federal e os governos estaduais, aberta pela pandemia, o governo Bolsonaro, desde a posse, tensiona as relações com os demais poderes e instituições políticas do país. O que era antes uma disputa aberta com o Congresso pelo protagonismo de aprovação das reformas que transferem para a classe trabalhadora os custos da crise econômica, torna-se com o aprofundamento da crise, uma disputa generalizada com os demais poderes políticos, isolando cada vez mais Bolsonaro.

Além da saída de dois ministros da saúde, a saída do ministro da justiça, Sergio Moro, um dos principais alicerces do governo Bolsonaro por representar a essência do antipetismo e da luta contra a corrupção, escancarou o isolamento de Bolsonaro no governo. Moro saiu denunciando Bolsonaro por tentar intervir no comando da Polícia Federal para evitar o avanço das investigações contra os filhos, envolvidos com esquemas de rachadinhas, operações milicianas, produção de fake News e até no assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ).

No governo Bolsonaro, Moro acumulou algumas derrotas como a aprovação distorcida do projeto original de seu pacote anticrime, cujas modificações foram comemoradas como vitória pela oposição reformista. Além disso, a aproximação de Bolsonaro com o “centrão” no Congresso Nacional para evitar o avanço dos mais de 30 processos de impeachment protocolados, causou certo constrangimento para o paladino da justiça, já que muitos políticos que compõem essa base são condenados em processos de corrupção, como o “mensalão”. Bolsonaro já desembolsou, apenas em abril, R$ 6,2 bilhões para emendas parlamentares para o centrão. Moro, ao abandonar o barco governista, ainda apresentou provas da interferência de Bolsonaro na PF para proteger seus interesses e, dentre estas, um vídeo de uma reunião ministerial que caiu nas mãos do STF.

Junto com Moro, diversas frações da burguesia ligada ao imperialismo também abandonaram o governo. A incapacidade de produzir resultados econômicos satisfatórios, mesmo antes da pandemia, colaborou para a maior fuga de capitais estrangeiros do país e desvalorização brutal da moeda. A política de Guedes, a menina dos olhos do governo Bolsonaro, de reformas de enxugamento do Estado e privatizações chocou-se com a necessidade de intervenção estatal trazida pela pandemia. Ou seja, o Brasil deixou de ser aos olhos do imperialismo, um país atrativo para investimento como fora outrora. Diariamente, Bolsonaro é massacrado pela grande mídia que faz coro com setores da oposição por sua saída do governo, vislumbrando até os prós e contras de diferentes processos para chegar ao afastamento de fato.

O STF tem protagonizado o enfrentamento com Bolsonaro. O ministro Celso de Mello autorizou a divulgação do vídeo da reunião ministerial. Entre discursos extremistas dos ministros, incluindo sugestões de prisões para ministros do STF e governadores, o vídeo desmascarou o governo Bolsonaro como um governo de “rapina”, de aparelhamento do Estado para servir a seus interesses milicianos. Celso de Mello também recomendou que a PGR recolhesse o aparelho celular de Bolsonaro, provocando a ira do governo federal com declarações ameaçadoras à estabilidade nacional por parte oficiais de reserva que compõem o governo. Já o ministro Alexandre de Moraes avançou no inquérito das “Fake News”, despachando mandatos de busca e apreensões de celulares e notebooks de apoiadores de Bolsonaro que compõem o “gabinete do ódio”, responsável pela criação e divulgação de fake news pró governo e também dirigido pelos filhos do presidente. Alexandre de Moraes também tomou posso no Tribunal Superior Eleitoral, no qual somam-se oito ações de cassação da chapa Bolsonaro e Mourão por irregularidades na campanha.

Cada vez mais isolado, a estratégia de Bolsonaro tem sido a de elevar o tom contra as instituições do estado, tentando manter e fidelizar sua base eleitoral mais extremista, ao mesmo tempo em que articula sua reorientação no congresso com o centrão para evitar um processo de impeachment. Para isso, Bolsonaro tem utilizado em seus discursos elementos ideológicos golpistas, da extrema direita e de regimes fascistas, agradando cada vez mais seus apoiadores mais radicais  e, ao mesmo tempo, conduzindo a pauta das direções para a luta pela democracia e antifascista. A ausência de uma política independente para os trabalhadores tem nos mantido reféns do discurso ideológico bolsonarista e desmobilizados pelas políticas de “defesa da vida”.

 

CONTRA O FASCISMO E GOLPE: DEMOCRACIA?

Os discursos de representantes do governo assumiram, nas últimas semanas, o teor ideológico do fascismo. Citação de Mussolini, símbolos relacionados à extrema direita racista como o leite, tochas e a bandeira ucraniana passaram a fazer parte do repertório do presidente, de seus ministros e influenciadores digitais. Movimentos organizados de apoio à Bolsonaro, como o “300” em Brasília levantam a consigna de “Ucranizar o Brasil” e outras palavras de ordem pela ditadura militar contra a “ditadura do STF”. Já os militares de reserva que fazem parte do governo, como o general Heleno, soltam mensagens abertamente golpistas para, logo depois, moderar o discurso.

Com isso, Bolsonaro pretende fidelizar sua base eleitoral mais radical, abertamente extremista, e que lhe confere ainda algum capital eleitoral para se segurar politicamente enquanto busca construir uma base no congresso, bem como consolidar o apoio das Forças Armadas. Essa estratégia política reacendeu os debates sobre o avanço do fascismo no Brasil e o advento de um golpe militar a ponto de se começar a construir uma grande frente suprapartidária que  agrega setores da sociedade civil de toda gama (empresários, movimentos populares, artistas, intelectuais) e políticos liberais e reformistas pela democracia, como o Movimento Estamos Juntos e #Somos70% (em referência ao índice de desaprovação ao governo).

O fascismo, assim como a democracia burguesa, são formas de dominação da burguesia monopolista utilizadas conforme condições históricas e se apoiam em diferentes combinações de classe. O fascismo desenvolveu-se, historicamente, no contexto da disputa entre o imperialismo e a ditadura revolucionária do proletariado e, portanto, é caracterizado pela destruição sistemática de todas as organizações operárias. Enquanto que na democracia, a burguesia se apoia nas organizações dos trabalhadores e suas direções adaptadas, no fascismo a burguesia se apoia na pequena burguesia para, sobretudo, destruir as organizações operárias.

Desse modo, sendo o fascismo uma forma de dominação imperialista, “a mais selvagem e abominável forma do imperialismo”, não é possível sua existência histórica nos países semicoloniais, como o Brasil. Nos países semicoloniais, a forma de dominação está intrinsecamente relacionada à dependência imperialista de uma burguesia relativamente débil frente a um proletariado desenvolvido, criando “condições especiais de poder estatal”.  Assim, estes países podem até assumir regimes “semi-fascistas” como nas ditaduras civis e militares presentes em suas histórias recentes. Contudo, essas ditaduras são mantidas e apoiadas por países imperialistas, na maioria das vezes “democráticos”. Nos países semicoloniais, a luta contra o fascismo só pode ser a própria luta contra o imperialismo.

Às ameaças de golpe, se contrapõe a democracia burguesa. Todos: empresários, políticos de “direita e esquerda”, movimentos sociais, organizações centristas e as direções sindicais pela democracia. A democracia como contraposição ao golpe fascista, mascara o caráter de classe de ambas as formas de dominação. Não é surpresa a defesa da democracia pelo empresariado e políticos, pois a democracia não altera o conteúdo burguês da dominação. Contudo, quando o fazem organizações políticas dos trabalhadores e direções sindicais, o fazem de forma oportunista e conciliatória. Da mesma forma, a consigna “Fora Bolsonaro”, ou a mais “radical” ainda “Fora Bolsonaro e Mourão”, não expressam uma política independente para os trabalhadores, apenas a circunscreve no marcos da governabilidade da democracia burguesa.

A democracia burguesa não serve aos trabalhadores, é a ditadura de classe do capital, é a democracia da ínfima minoria, a democracia dos ricos! O fechamento do regime, alentado por Bolsonaro na forma de uma ditadura, tem implicações sérias na organização dos trabalhadores e no aumento de repressão, mas não muda o caráter de classe da democracia burguesa. As liberdades democráticas nunca impediram o massacre diário da classe trabalhadora, nem a utilização das Forças Armadas para reprimi-la nos processos abertos de luta de classes. Como defenderia Lenin, a liberdade que não é capaz de emancipar a classe trabalhadora da opressão do capital, não é liberdade, mas pura demagogia.

O advento de um golpe militar ou de um autogolpe de Bolsonaro depende da correlação de forças entre o governo, a orientação da política imperialista e o movimento independente dos trabalhadores. Também é importante observar o movimento das Forças Armadas no próximo período, já que Bolsonaro tem ameaçado fazer uso de sua força para intervir nos demais poderes. Nos países semicoloniais, as Forças Armadas cumprem um importante papel na forma de dominação apresentada. O fato é que, ainda que pouco provável, qual a política que os trabalhadores deveriam assumir num cenário golpista? Abraçar uma frente ampla conciliatória para as próximas eleições? Ou instaurarmos, em nossas organizações, comitês de segurança e autodefesa? Nós, trabalhadores, não podemos ficar reféns das orientações da política burguesa, mas precisamos intervir e construir uma saída independente para a crise.

À ditadura não se contrapõe a democracia burguesa, porque ambas são expressões da forma de dominação da burguesia. À ditadura do capital é preciso contrapor e impor a ditadura revolucionária do proletariado, única forma possível de dominação da classe trabalhadora. No cenário de decomposição imperialista, as tarefas que se colocam para os revolucionários são imensas e, neste sentido não se pode admitir titubeações conciliatórias. Aos ataques e ameaças advindos do governo, é preciso contrapor um programa operário de saída para a crise, que não será resolvida nos marcos da democracia burguesa, nem na ampliação desta!

É preciso, portanto, dar uma batalha pela abertura de nossos sindicatos, e, internamente enfrentar não só a burocracia traidora, mas também o centrismo adaptado. É urgente romper com o imobilismo das centrais! Precisamos levantar um congresso nacional de delegados mandatários e eleitos na base para discutir um programa operário de saída da crise.

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